A integração entre energia solar fotovoltaica e mobilidade elétrica representa uma das mais promissoras sinergias da transição energética global. De um lado, a energia solar avança como uma das fontes renováveis mais acessíveis e democráticas; de outro, os veículos elétricos (VEs) despontam como alternativa concreta à mobilidade baseada em combustíveis fósseis. A convergência dessas tecnologias potencializa os impactos positivos de cada uma delas — ambientais, econômicos e sociais — e aponta para um modelo mais sustentável de energia e transporte.
Com a eletrificação do transporte, a demanda por energia elétrica tende a crescer. Se essa energia for de origem limpa, os benefícios ambientais da mobilidade elétrica se ampliam consideravelmente. Nesse cenário, o uso de sistemas solares fotovoltaicos para abastecer veículos elétricos — seja em residências, comércios, rodovias ou infraestruturas públicas — surge como uma estratégia de descarbonização eficiente, econômica e descentralizada.
O avanço da mobilidade elétrica solar no Brasil
No Brasil, diversos projetos já demonstram que a combinação entre mobilidade elétrica e energia solar não apenas é viável, como também estratégica. A EDP, por exemplo, desenvolveu no Ceará o primeiro ônibus elétrico movido 100% por energia solar. A iniciativa inclui uma estação de recarga fotovoltaica com baterias de lítio e gerou um modelo replicável para frotas públicas. O veículo possui autonomia de até 300 quilômetros e tem servido de referência para municípios que desejam eletrificar seu transporte coletivo com base em fontes renováveis.
Outro destaque é a Eletrovia Verde da Neoenergia, que conecta seis capitais do Nordeste por meio de 18 estações de recarga elétrica, muitas alimentadas por fontes renováveis. Esse corredor sustentável é uma resposta concreta à falta de infraestrutura nas rodovias brasileiras para veículos elétricos e um marco importante para a eletromobilidade no país.

Além disso, a parceria entre a chinesa BYD e a Raízen prevê a instalação de mais de 600 eletropostos em oito grandes cidades brasileiras. O projeto visa não apenas ampliar a infraestrutura, mas também integrar energia solar gerada em unidades da Raízen e de parceiros. Embora ainda sejam necessários ajustes regulatórios, iniciativas assim ajudam a democratizar o acesso à recarga elétrica com baixa pegada de carbono.
Em menor escala, mas com grande valor simbólico e técnico, destacam-se os projetos-piloto de boxes solares para recarga veicular em universidades e centros de pesquisa. Um exemplo é o da Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (UNIARP), em SC, onde painéis solares e baterias alimentam um ponto de recarga veicular comunitário. A proposta reforça o conceito de microgeração local, associada à mobilidade elétrica de forma descentralizada e resiliente.
Tendências tecnológicas e desafios
O avanço das tecnologias associadas à integração solar-mobilidade abre caminhos antes impensáveis. Uma das principais tendências é o uso de sistemas de recarga bidirecional, especialmente os modelos Vehicle-to-Home (V2H) e Vehicle-to-Grid (V2G). Nesses sistemas, o veículo se transforma em uma espécie de bateria ambulante, podendo abastecer uma casa ou até devolver energia à rede elétrica em horários de pico, o que colabora para a estabilidade do sistema e reduz custos operacionais.
No Brasil, testes com o Nissan LEAF e sistemas V2H já ocorrem em parceria com universidades. Embora a aplicação ainda enfrente entraves regulatórios e logísticos, a perspectiva de popularização é real, especialmente se aliada à geração fotovoltaica residencial.

Outra frente importante é a digitalização da infraestrutura. Sensores, softwares de gestão energética e plataformas em nuvem têm sido usados para prever padrões de carregamento, otimizar o uso da energia solar gerada e evitar sobrecargas na rede. Com redes elétricas mais inteligentes (smart grids), a integração entre geração, armazenamento e consumo se torna mais dinâmica, segura e eficiente.
Apesar dos avanços, persistem desafios. O custo inicial de aquisição de veículos e sistemas solares, embora em queda, ainda é um obstáculo para muitas famílias e empresas. A infraestrutura de recarga ainda é incipiente fora dos grandes centros. E, mais importante, falta uma política nacional articulada que conecte os pilares da eletromobilidade à expansão da energia solar descentralizada.
Exemplos internacionais e aprendizados
Fora do Brasil, experiências consolidadas mostram que é possível — e desejável — avançar nessa integração. Na Alemanha, a comunidade Solar Settlement, em Freiburg, reúne residências com painéis solares, veículos elétricos e uma rede de distribuição energética local. A energia excedente é injetada na rede, e os moradores usam os veículos também como suporte energético para emergências e consumo noturno.
No Japão, cidades como Kitakyushu transformaram edifícios públicos em hubs de recarga alimentados por energia solar. Durante desastres naturais, veículos elétricos equipados com V2H funcionam como fonte alternativa de energia para hospitais e escolas. Esse modelo já é previsto no planejamento urbano como parte da resiliência climática.
Nos Estados Unidos, a Tesla criou postos de recarga ultrarrápida (Superchargers) conectados a usinas solares e bancos de baterias Powerpack. Essas estações operam parcialmente fora da rede elétrica convencional, com grande eficiência. Em regiões rurais, como no estado de Nova York, as “comunidades solares móveis” estão surgindo como alternativa para populações de baixa renda.
A combinação entre políticas públicas estáveis, incentivos econômicos e modelos tecnológicos replicáveis explica o sucesso desses projetos. Esses casos ajudam a inspirar soluções tropicais, adaptadas às realidades regionais brasileiras.
Impactos ambientais, econômicos e sociais
A substituição progressiva de veículos a combustão por elétricos pode reduzir em até 70% as emissões do setor de transporte, segundo estimativas da Agência Internacional de Energia (IEA, 2024). Se a energia utilizada na recarga for solar, esse número se aproxima de 100% em termos de emissões diretas.
Emissões de carbono ao longo do tempo: veículos elétricos se tornam mais limpos após dois anos de uso

A energia solar ainda agrega um componente econômico importante: a geração distribuída permite reduzir a conta de luz, especialmente para empresas com frotas elétricas. O retorno do investimento tende a ocorrer em prazos mais curtos quando há economia simultânea de combustível e energia. Cidades que apostam na eletrificação do transporte público e na geração fotovoltaica local relatam quedas nos gastos com manutenção, saúde pública (pela melhora na qualidade do ar) e energia.
Socialmente, a mobilidade solar tem impacto positivo ao democratizar o acesso à energia limpa. Comunidades rurais e urbanas com menor acesso à rede elétrica podem se beneficiar da instalação de estações solares de recarga compartilhadas. Com o modelo de comunidades solares — que vem ganhando força no Brasil — é possível que mesmo quem não pode instalar painéis tenha acesso a energia renovável para abastecer seu veículo.
Propostas e caminhos para o futuro
Para que essa integração avance, algumas medidas estratégicas são urgentes. Entre elas:
- Criação de um programa nacional de mobilidade elétrica solar, com incentivos fiscais para projetos integrados: Como referência internacional, a Alemanha possui o programa “KfW Umweltprogramm”, que financia simultaneamente sistemas solares e veículos elétricos. Já na Índia, o programa PM-KUSUM incentiva o uso de energia solar combinada com eletromobilidade em áreas rurais. No Brasil, essa proposta pode se apoiar em experiências anteriores como o Renovabio e o PROCONVE, sendo complementada por linhas verdes já operadas pelo BNDES, criando sinergia entre descarbonização da mobilidade e expansão das fontes renováveis.
- Revisão regulatória para viabilizar modelos V2G e V2H em pequena e grande escala: O Japão já adota amplamente o sistema V2H em cidades como Kitakyushu, utilizando veículos elétricos como fontes de energia em situações emergenciais. No Reino Unido, o projeto “Electric Nation” testa o V2G com distribuidoras locais, e na Califórnia, escolas públicas utilizam ônibus escolares elétricos para alimentar a rede nos horários de pico. No Brasil, o Marco Legal da Geração Distribuída (Lei 14.300/2022) e resoluções da ANEEL oferecem uma base que pode ser ajustada para incluir a bidirecionalidade da energia veicular, garantindo segurança técnica e jurídica para essas novas aplicações.
- Investimento público em infraestrutura de recarga solar descentralizada em cidades médias e pequenas: Na Austrália, empresas públicas como a Horizon Power operam microrredes solares com baterias em comunidades isoladas. Nos Estados Unidos, estados como Colorado e Nova York têm investido em “solar carports” e estações públicas de recarga em regiões com baixa densidade populacional. No Brasil, essa proposta tem grande potencial especialmente nas regiões Norte e Nordeste, onde já existem projetos-piloto em escolas, postos de saúde e assentamentos, que podem ser replicados e ampliados com apoio federal e estadual.
- Estímulo à capacitação técnica e ao empreendedorismo verde com foco em instalação, operação e manutenção: A Coreia do Sul criou centros regionais de formação técnica para atender a demanda por mão de obra especializada em baterias, painéis solares e veículos elétricos. No Canadá e nos EUA, programas como o “Clean Energy Jobs Act” têm financiado cursos técnicos alinhados à transição energética. No Brasil, o sistema SENAI, os Institutos Federais e as universidades públicas já oferecem infraestrutura e conhecimento para formar profissionais nesse setor. A articulação com a indústria nacional e as startups pode impulsionar empregos verdes em escala regional.
- Criação de linhas de crédito verdes para aquisição simultânea de veículos elétricos e sistemas fotovoltaicos. Na França, o Banque Publique d’Investissement (BPI) já disponibiliza crédito integrado para a compra de veículos elétricos e infraestrutura de recarga alimentada por energia solar. A Alemanha, por meio do KfW Bank, também opera linhas semelhantes. No Brasil, o BNDES, a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil já oferecem produtos voltados a energias renováveis e mobilidade sustentável. A criação de uma linha específica e integrada pode estimular consumidores residenciais, cooperativas e pequenas empresas a adotarem soluções combinadas.
Além disso, é fundamental que universidades, empresas e o poder público atuem de forma articulada para formar redes locais de inovação em energia e transporte. Projetos-piloto bem-sucedidos devem ser documentados, replicados e ampliados, com mecanismos de monitoramento e avaliação de impacto. A construção de uma política pública integrada, com metas, financiamento e acompanhamento, será essencial para que o Brasil lidere essa transformação na América Latina.
Considerações finais
A integração entre energia solar e mobilidade elétrica já é realidade em diversas regiões do Brasil e do mundo. Mais do que uma tendência, ela representa uma resposta concreta e estruturante aos desafios do século XXI — como a emergência climática, os altos custos da energia e a desigualdade no acesso à mobilidade urbana.
Com sol abundante, um parque tecnológico fotovoltaico em rápida expansão e crescente interesse pela eletromobilidade, o Brasil tem todas as condições para liderar esse processo. O futuro da energia — e da mobilidade — será descentralizado, inteligente, compartilhado e renovável. E esse futuro já está sendo construído.
Sobre o autor:
Fernando de Lima Caneppele é professor associado na Universidade de São Paulo (USP) e atua com foco em Energia, Transição Energética e Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 7 (ODS7).
Os pontos de vista e opiniões expressos neste artigo são dos próprios autores, e não refletem necessariamente os defendidos pela pv magazine.
Este conteúdo é protegido por direitos autorais e não pode ser reutilizado. Se você deseja cooperar conosco e gostaria de reutilizar parte de nosso conteúdo, por favor entre em contato com: editors@pv-magazine.com.
Ao enviar este formulário, você concorda com a pv magazine usar seus dados para o propósito de publicar seu comentário.
Seus dados pessoais serão apenas exibidos ou transmitidos para terceiros com o propósito de filtrar spam, ou se for necessário para manutenção técnica do website. Qualquer outra transferência a terceiros não acontecerá, a menos que seja justificado com base em regulamentações aplicáveis de proteção de dados ou se a pv magazine for legalmente obrigada a fazê-lo.
Você pode revogar esse consentimento a qualquer momento com efeito para o futuro, em cujo caso seus dados serão apagados imediatamente. Ainda, seus dados podem ser apagados se a pv magazine processou seu pedido ou se o propósito de guardar seus dados for cumprido.
Mais informações em privacidade de dados podem ser encontradas em nossa Política de Proteção de Dados.