Até fevereiro de 2021 era garantido a todos os empreendimentos de fonte renovável o benefício do desconto de, no mínimo, 50% nos custos relacionados à Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão ou Distribuição (TUST/D). Tal benefício contribuiu de sobremaneira para a expansão da matriz energética brasileira nas últimas décadas, colaborando com a viabilidade de dezenas de projetos.
Entretanto, com o ganho de competividade das fontes renováveis, tal benefício deixou de ser essencial para garantir a expansão do parque de geração do país. Por este motivo o Governo, por meio da Lei nº 14.120 publicada em fevereiro de 2021, colocou fim à concessão do desconto na TUST/D para as usinas renováveis – sendo estabelecidas algumas regras de transição. Esse fim na concessão de desconto na TUST/D criou uma verdadeira “corrida” por pedidos de outorgas de usinas à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A título exemplificativo, atualmente existem cerca de 145 GW de outorgas emitidas de usinas solares e eólicas que ainda não estão em construção, volume que impressiona quando comparado à potência centralizada atualmente em operação, equivalente a 208 GW. Esse volume excepcional de projetos eólicos e solares sistêmicos são todos “onshore”, portanto ainda existe outro volume “colossal” dos chamados projetos “offshore”.
O fato é que a matriz brasileira possui um estoque imenso de projetos de novas renováveis, o que garante que a produção de energia para a transição energética não será uma restrição tão cedo. Sendo realista, o que vai faltar é mercado para consumir esse potencial, infraestrutura de transmissão no tempo e na hora necessária, e a garantia de uma operação também segura.
A geração intermitente de usinas solares e eólicas apresenta desafios de operação para o sistema elétrico, resultando em eventuais desencontros entre suprimento e demanda.
O aumento de fontes renováveis das usinas solares e eólicas apresenta desafios operacionais relacionados à sua geração intermitente. Isso se deve principalmente à curva de geração desse tipo de fonte, que está relacionada à disponibilidade imediata do recurso natural (incidência solar e ventos). Como resultado dessa característica, a geração de energia pode ocorrer em momentos em que não existe demanda elétrica, o que causa reduções da geração renovável – também chamado de “constrained-off”, ou mesmo nos momentos em que o transporte da energia está com restrições.
Este fenômeno não é exclusivo do SIN brasileiro. No final de 2020, nos Estados Unidos, por exemplo, existiam 5.600 projetos de geração aguardando na fila em busca por espaço na rede elétrica para conexão, que juntos representam 755 GW de potência. E a fila por acesso à transmissão neste país vem crescendo nos últimos anos. No período entre 2000 e 2009, o tempo médio de espera na fila de conexão até a efetiva operação comercial era de 2 anos. Esse tempo passou para 3,5 anos para os projetos construídos entre 2010 e 2020. Além disso, historicamente, nos EUA apenas 24% dos projetos que esperam nas filas para conexão entram em operação comercial. Esse número é ainda menor para projetos eólicos (19%) e solares (16%), sendo o maior responsável por esse baixo desempenho a falta de transmissão para a conexão dessas usinas.
Atualmente, na regulação brasileira, os eventos de “constrained-off”, que levam ao “curtailment”, são classificados em três tipos de acordo com suas motivações:
- Atendimento dos Requisitos de Confiabilidade Elétrica – motivados pela necessidade de uma operação com confiabilidade elétrica, e que não têm origem em indisponibilidades nos equipamentos de transmissão.
- Razões Energéticas – motivado pelas impossibilidades de alocação da geração para atendimento à carga – assimetria entre suprimento de energia e demanda.
- Indisponibilidade Externa – motivados por indisponibilidade externa ao sistema de geração que pode ocorrer no SIN.
A regulação atual admite o reembolso do constrained-off em parques eólicos e solares em eventos classificados por indisponibilidade externa, após superados os limites regulatórios de horas definidos pelo ONS.
Em 15 de agosto de 2023, ocorreu um evento de desligamento de energia no Brasil, que gerou uma interrupção significativa de carga em todo o país. Após esse evento, o ONS reduziu os limites de exportação do subsistema de transmissão Nordeste, impondo uma abordagem de maior segurança. A modificação para parâmetros mais rígidos de operação é uma prerrogativa da regulamentação vigente.
Após a redução nos limites de transmissão, atrelado à entrada em operação de novos projetos de geração intermitente, eventos de corte de geração passaram a ser mais frequentes, em especial na região Nordeste. Especificamente para a fonte solar, as áreas mais críticas para eventos de constrained-off são a Bahia, seguida pelo Piauí e norte de Minas Gerais. Para a fonte eólica, as áreas mais críticas para eventos de constrained-off são o Rio Grande do Norte, seguido pela Bahia, Piauí e Ceará. Nas regiões mais críticas o “curtailment” chega a volumes acima de 20% da produção, o que significa perda de receita para os investidores.
A expansão de transmissão prevista e contratada para os próximos anos vai atenuar estes eventos de corte de geração, mas pela magnitude dos novos projetos e a concentração em certas regiões, o “curtailment” é uma realidade que veio para ficar. Evidentemente, com uma intensidade mais controlada, devido às lições aprendidas pelos agentes envolvidos.
Soluções imaginadas passam não só pela expansão da transmissão, mas também pelas soluções de armazenamento, seja por baterias ou por usinas reversíveis. O uso de tecnologias de armazenamento é capaz de suavizar a intermitência e permitir uma geração mais controlável, que pode se encaixar melhor nos espaços fora das restrições operacionais. Outra forma, hoje já disponível, é a manutenção, durante a operação, da geração com máquinas síncronas em níveis adequados, que possam fornecer mais segurança para a operação.
Este cenário atual, eventualmente, começará a afetar o apetite dos investidores que ficarão relutantes em construir usinas que poderão ter sua geração reduzida compulsoriamente devido ao congestionamento na rede elétrica.
Existem soluções e devemos buscá-las em prol de uma transição energética segura e sustentável, ambientalmente e economicamente. O CIGRE-Brasil é uma fonte adequada de debates em busca de soluções técnicas em prol dos investidores e consumidores.
*João Carlos Mello é CEO da Thymos Energia, membro da Academia Nacional de Engenharia, e diretor-presidente do Cigré Brasil, onde atuou também como coordenador do comitê de estudos C5 – mercados de eletricidade e regulação. Mello é doutor e mestre em Engenharia Elétrica pela PUC-RJ
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