Desafios na confiabilidade de módulos bifaciais: quebra de vidro em módulos de grande área

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Em 2022, a equipe do Laboratório Fotovoltaica/UFSC colocou em operação uma usina piloto com o objetivo de avaliar o desempenho de módulos fotovoltaicos bifaciais nas condições climáticas brasileiras e investigar os ganhos energéticos proporcionados por diferentes tipos de solo. Localizado em Florianópolis, Santa Catarina, o projeto utilizou módulos bifaciais de última geração, com potência individual superior a 600 Wp, instalados tanto em rastreadores quanto em estruturas fixas. Os pesquisadores não antecipavam que estavam prestes a enfrentar uma das maiores preocupações da indústria atualmente: falhas generalizadas no vidro dos módulos fotovoltaicos. 

O Caso UFSC 

Pouco tempo após a comissionamento da usina, os pesquisadores notaram trincas no vidro de alguns módulos. Inspeções regulares foram realizadas, e uma tendência de 14 módulos quebrados por mês foi registrada ao longo de um período de sete meses. Dentro de nove meses, mais de 50% dos módulos instalados apresentavam vidro quebrado. Os dados de monitoramento climático durante esse período não mostraram anomalias de temperatura ou eventos extremos de vento. Foi nesta época também que o estudo de caso foi apresentado pela primeira vez na 2023 NREL PV Reliability Workshop. 

Registro de módulos com vidro quebrado na usina piloto do Laboratório Fotovoltaica/UFSC em Florianópolis-SC. Marcações em amarelo indicam trincas no vidro posterior; em vermelho, trincas na face frontal dos módulos; e em laranja, módulos com ambos os vidros trincados.

Imagem: UFSC

Um ano após o início da operação da usina, as trincas no vidro começaram a comprometer a segurança e o desempenho do sistema, com falhas frequentes de isolamento em dias chuvosos e o surgimento de delaminações próximas às trincas, resultando em pontos quentes. Os módulos fotovoltaicos de toda a usina foram substituídos por sobressalentes adquiridos na mesma remessa dos originais. No entanto, o problema das trincas reapareceu, afetando toda a usina piloto. 

Após uma análise minuciosa, não foi possível correlacionar o surgimento das falhas a problemas no projeto das estruturas, erros de instalação, falhas no controle da vegetação ou a eventos climáticos extremos. A investigação da causa raiz permanece em andamento, contando com a colaboração de entidades independentes, além dos fabricantes dos módulos e dos sistemas de fixação. 

Os módulos utilizados no projeto são bastante representativos dos amplamente empregados em usinas fotovoltaicas atualmente: de grande formato, com área superior a 3 m² e peso próximo a 40 kg. As células fotovoltaicas são encapsuladas entre duas lâminas de vidro de 2 mm cada. Devido à menor espessura, essas lâminas de vidro não são mais completamente temperadas, passando apenas por um tratamento térmico intermediário, o que compromete sua resistência em comparação com o vidro temperado de 3,2 mm tradicionalmente utilizado na indústria de módulos fotovoltaicos.

No processo de tempera, o vidro é aquecido em um forno a temperatura elevada (600 °C a 700 °C) e, em seguida, sua superfície é rapidamente resfriada, provocando compressão nas superfícies e arestas (> 10.000 psi), o que eleva a resistência do vidro. Placas de vidro de menor espessura não suportam as elevadas temperaturas e o resfriamento desse método.

Já as placas finas de vidro são submetidas a uma “tempera química”, que ocorre a temperatura mais baixa, aproximadamente 450 °C, por troca de íons e que resulta numa superfície que está sob esforços de compressão, o que a torna mais resistente. O enchimento resulta em uma rede atômica quase rígida de vidro com uma alta compressão superficial que diminui rapidamente para uma pequena tensão de equilíbrio no interior, dependendo da profundidade de troca iônica e da espessura do vidro.

Na tempera química as placas de vidro de espessura de 2mm são mergulhadas em Nitrato de Potássio (KNO3) fundido, resultando em uma troca iônica em regiões de profundidade de cerca de 25 micrometros (0,025 mm) que aumenta a dureza superficial. Nesse processo o aumento da resistência do vidro não o leva à mesma robustez dos vidros tratados por tempera térmica.  Além disso, o fato de o vidro não ser temperado dificulta a identificação das quebras, pois, em vez de estilhaçar, o vidro apresenta apenas trincas, tornando os danos menos visíveis, mas igualmente problemáticos para a integridade dos módulos. 

Exemplos de módulos fotovoltaicos com vidro quebrado: à esquerda, um módulo mais recente com vidro de 2 mm semitemperado; à direita, um módulo mais antigo com vidro temperado de 3,2 mm. 

O Caso USP 

A USP está enfrentando um problema muito semelhante em sua usina piloto mais recente. Construída no final de 2023, essa usina já apresenta um quarto de seus módulos com algum tipo de quebra no vidro. 

Registro de módulos com trincas no vidro posterior na usina piloto do Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos do Instituto de Energia e Ambiente/USP, em São Paulo-SP. 

Imagem: LSF-IEE/USP

Curiosamente, módulos semelhantes aos instalados em São Paulo foram utilizados em outra usina na Espanha, onde não estão apresentando o mesmo problema. Isso reforça algumas hipóteses importantes: 1) a fixação dos módulos desempenha um papel crucial no surgimento de trincas; e 2) módulos que à primeira vista parecem idênticos podem ter diferentes BOMs (bill of materials), mesmo quando saem da mesma linha de produção, o que também pode influenciar sua suscetibilidade a trincas. Destaca-se que esta última hipótese parte da observação de que os módulos da usina da USP possuem uma catenária (abaulamento) mais acentuada em relação aos módulos utilizados na usina da Espanha.  

Vista da catenária (abaulamento) do vidro dos módulos da usina da USP.

Imagem: LSF-IEE/USP

Não são casos isolados 

Infelizmente, esses não são eventos isolados na indústria solar. A equipe da UFSC tem sido procurada por operadores e proprietários de usinas no Brasil e no exterior que enfrentam os mesmos problemas observados no piloto de pesquisa. O que inicialmente parecia ser uma situação atípica em projetos pilotos no Brasil, hoje é tema de conferências internacionais de energia solar fotovoltaica. Laboratórios especializados em testes de módulos FV, como TÜV Rheinland, Kiwa Group e CFV Labs, também têm apresentado dados indicando uma maior fragilidade mecânica dos módulos atuais quando comparados com os tradicionais vidro-backsheet, destacando a crescente preocupação com a confiabilidade desses módulos fotovoltaicos em campo. 

Há uma preocupação geral de que a quebra de vidro se torne uma ameaça maior do que antes devido a uma combinação de fatores. Os módulos estão ficando maiores, as estruturas/molduras metálicas estão se tornando mais delgadas e menos resistentes e os trilhos de montagem estão ficando mais curtos. Todos esses elementos contribuem para a formação de um sistema que exerce mais pressão sobre a superfície do vidro, que também está se tornando mais fina. 

O módulo e a sua fixação 

A tendência de aumentar o tamanho dos módulos fotovoltaicos e reduzir a espessura do vidro visa otimizar a produção, mas também introduz novas fragilidades. Para reduzir custos, os fabricantes têm utilizado vidros e molduras mais finos, o que resulta em módulos mecanicamente mais frágeis e mais suscetíveis a tensões externas. Em termos simples, qualquer fabricante pode temperar um vidro de 3 mm. No entanto, a têmpera de vidros com espessura inferior a 3 mm é um processo complexo. À medida que o vidro se torna mais fino, um número menor de defeitos é suficiente para gerar falhas que comprometem a resistência do material. 

Tendo isso em vista, o vidro fotovoltaico, tratado como uma commodity pela indústria, pode não estar sendo submetido a um controle de qualidade tão rigoroso quanto o necessário. Isso levanta a possibilidade de que as trincas observadas em campo sejam consequência de imperfeições microscópicas presentes no vidro desde a fabricação, tornando os módulos mais vulneráveis a danos quando expostos às condições de operação. Essa realidade ressalta a importância de um rigoroso controle de qualidade durante a produção para garantir a integridade e durabilidade dos módulos. 

Além da qualidade do vidro, outro fator crucial para entender o surgimento de trincas no vidro de módulos fotovoltaicos em campo é a fixação. Os manuais de instalação frequentemente apresentam diversos tipos de fixação permitidos pelo fabricante, geralmente associados à máxima carga mecânica suportada em cada caso. No entanto, a certificação da resistência mecânica dos módulos é realizada com uma configuração padrão de quatro apoios, que difere da configuração comumente utilizada em usinas fotovoltaicas com rastreadores. Dados de laboratórios internacionais mostram que módulos que passam na certificação com a fixação padrão podem não suportar adequadamente a carga em situações de fixação em rastreadores. 

Portanto, é fundamental considerar a realização de testes independentes para verificar a capacidade de carga dos módulos nas condições específicas de fixação do projeto, a fim de minimizar riscos. Essa abordagem garantirá que os módulos estejam adequadamente preparados para enfrentar as tensões e condições do ambiente em que serão instalados. 

Riscos de Novas Tecnologias e Certificação 

O problema das trincas é um indicativo comum da implementação rápida de novas tecnologias sem uma avaliação abrangente de seus efeitos em condições reais de operação. Quando uma nova tecnologia é introduzida no mercado, é natural que ela passe por um ciclo de aprendizado em relação à sua confiabilidade. É impossível prever todos os problemas que podem surgir em campo e, principalmente, garantir que os testes utilizados para identificar falhas em um produto anterior consigam antecipar todas as novas falhas associadas a uma nova tecnologia. 

Atualmente, o problema de quebra de vidro em módulos fotovoltaicos encontra-se na fase de observação das falhas em campo, permitindo o desenvolvimento de novos testes que visam antecipar e evitar a instalação de módulos defeituosos. Surgem, assim, questionamentos sobre a adequação dos testes de certificação existentes, que podem não ser suficientemente rigorosos para acompanhar as novas tendências do mercado, como o uso de rastreadores e a ocorrência cargas dinâmicas. 

Além da necessidade de aprimorar os testes em si, é possível que os módulos avaliados não sejam representativos dos que estão efetivamente instalados em campo. Pode ser necessário, ainda, aumentar o tamanho das amostras utilizadas nos testes de aprovação na fábrica, garantindo assim uma melhor validação da confiabilidade dos módulos em condições reais de operação. 

Preocupações da Indústria 

Com a crescente demanda por módulos de alta potência no Brasil, especialmente os bifaciais, é fundamental que a indústria esteja atenta aos desafios associados a essa evolução. Em uma usina, a ocorrência de falhas no vidro representa um desafio significativo. O desligamento de partes da usina, causado por falhas de isolamento relacionadas à quebra do vidro, pode comprometer tanto a produção de energia quanto a segurança dos sistemas. 

Além disso, como esses problemas são frequentemente difíceis de detectar a olho nu, torna-se necessário recorrer a métodos manuais de inspeção. Essa abordagem atrasa a identificação e correção das falhas, gerando perdas financeiras significativas para as usinas. A atribuição de responsabilidade nesses casos é um processo complexo e moroso, uma vez que, em geral, os módulos passaram pelas certificações necessárias e os projetos estruturais foram aprovados, o que inicialmente isenta os fabricantes dos módulos e das estruturas de fixação de qualquer culpa. Como resultado, o elo mais vulnerável muitas vezes é a equipe de EPC ou O&M, que se vê na posição de ter que compensar os prejuízos. 

Para mitigar esse problema, recomenda-se a implementação de testes mais rigorosos de resistência mecânica para a aprovação de produtos na fábrica. É fundamental que as amostras testadas reflitam a diversidade das linhas de produção e dos BOMs. Além disso, os testes devem ser realizados utilizando o método de montagem específico do projeto. Sempre que possível, é aconselhável incluir testes dinâmicos, em vez de se limitar apenas a avaliações estáticas, para garantir uma análise mais abrangente da robustez dos módulos em condições reais de operação. 

Ainda no âmbito da indústria, mas focando no aspecto do produto, percebe-se uma tendência ainda bastante discreta em direção à fabricação de módulos fotovoltaicos mecanicamente mais robustos. Enquanto alguns fabricantes possuem produtos com moldura de aço, outros estão recuando e relançando módulos com vidro de 3,2mm e backsheet, muitas vezes apresentando-os como novidades. 

Próximos Passos e Colaboração 

UFSC e USP estão desenvolvendo estudos mais aprofundados sobre este tema e convidam as empresas que tenham enfrentado problemas semelhantes em suas usinas a entrar em contato para compartilhar dados. O objetivo principal é coletar o máximo de informações possível sobre casos similares, a fim de mapear essas ocorrências e identificar padrões. Caso necessário, podem ser providenciados acordos de confidencialidade e anonimização das informações compartilhadas para proteger a identidade dos ativos afetados. As empresas interessadas podem entrar em contato pelo email mbraga.ufsc@gmail.com. 

Autores

Marília Braga¹, Roberto Zilles² e Ricardo Rüther¹ 

¹Laboratório de Energia Solar Fotovoltaica da Universidade Federal de Santa Catarina Fotovoltaica/UFSC www.fotovoltaica.ufsc.br 

²Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos da Universidade de São Paulo https://lsf.iee.usp.br 

Referências 

Braga et al. Investigating the causes and consequences of glass cracks on double-glass large area bifacial PV modules. Proceedings of the 2023 NREL PV Reliability Workshop (PVRW). Golden, CO. https://research-hub.nrel.gov/en/publications/photovoltaic-reliability-workshop-pvrw-2023-proceedings-posters 

Azevedo, K. L. R., Braga, M., Rüther, R. Estudo de caso sobre incidência e padrões de trincas em módulos fotovoltaicos de silício bifaciais vidro-vidro de grande área. Anais do X Congresso Brasileiro de Energia Solar. 2024. Natal, RN. DOI: https://doi.org/10.59627/cbens.2024.2505 

PV Evolution Labs. The Risk of Breakage in Thinner, not Fully Tempered Glass. Proceedings of the 2023 NREL PV Reliability Workshop (PVRW). Golden, CO. https://research-hub.nrel.gov/en/publications/photovoltaic-reliability-workshop-pvrw-2023-proceedings-posters 

Spontaneous glass breakage on solar panels on the rise. pv magazine International. Available: https://www.pv-magazine.com/2024/06/24/spontaneous-glass-breakage-on-solar-panels-on-the-rise/ 

Risen launched 700 W alloy steel framed module. pv magazine International. Available: https://www.pv-magazine.com/press-releases/risen-launched-700-w-alloy-steel-framed-module/ 

LONGi Solar North America Launches Ice-Shield Module. LONGi News. Available: https://www.longi.com/us/news/longi-launches-iceshield-module/https://www.longi.com/us/news/longi-launches-iceshield-module/ 

Mathijs P.M. Tas. Experimental repair technique for glass defects of glass-glass photovoltaic modules – A techno-economic analysis. Solar Energy Materials and Solar Cells, 257, 1 August 2023. https://doi.org/10.1016/j.solmat.2023.112397 

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