Os eventos climáticos extremos no País, que têm assolado de forma recorrente várias cidades brasileiras e causado inúmeros prejuízos econômicos, sociais e ambientais, a exemplo da ocorrência na capital paulista em 11/10, que deixou mais de 1,4 milhão de consumidores no escuro por mais de 72 horas, reacendem de forma crítica o debate sobre o atual modelo de atuação das distribuidoras de energia elétrica e a consequente forma de renovação das concessões deste serviço.
Atualmente em análise pelas autoridades brasileiras, a renovação dessas concessões deve endereçar dois pontos basilares para o serviço de distribuição de energia elétrica. O primeiro é deixar claro que o papel das distribuidoras não é a compra e venda de energia, mas sim a distribuição propriamente dita, com foco em serviços de rede para o usuário.
O segundo, não menos importante, é praticamente um desdobramento do primeiro, que seria a necessidade de direcionar os investimentos e os esforços para a consolidação das chamadas redes inteligentes, estáveis e multidirecionais.
O correto direcionamento desses recursos deve, portanto, caminhar para a atualização necessária da rede, a fim de que possa absorver os serviços de redes 4.0 e, com isso, ser devidamente remunerada, criando assim mais formas de utilização e novos mercados de serviços no setor de energia elétrica.
Fato é que, com a abertura prevista de todo o mercado para o ambiente livre de contratação nos próximos anos, o avanço da geração própria solar e a maior inserção dos sistemas de armazenamento energético nas unidades consumidoras, deverá ficar claro para as distribuidoras que o foco será a prestação adequada de serviços aos usuários da rede.
A atualização da rede para oferecer os serviços da próxima geração, ou seja, a rede 4.0, já é uma necessidade real dos consumidores brasileiros e deve agregar diversas tecnologias, como inteligência artificial, internet das coisas, monitoramento e controle eficientes, entre outros. Tudo isso demandará uso de microrredes, de sistemas de armazenamento e de outras soluções em pontos onde os estudos se mostrarem necessários.
Além de apontar as falhas e desafios, o caminho para a renovação das concessões de distribuição de energia elétrica deve ser pautado em soluções práticas e eficazes. Nesse sentido, é imperativo que a regulação avance na criação de mecanismos que incentivem a modernização da infraestrutura de rede. Exemplos bem-sucedidos de países que já implementaram redes inteligentes, como os Estados Unidos e a Alemanha, podem servir de inspiração. Em ambos os casos, foram implementados programas de incentivo à digitalização das redes, com o uso de tecnologias como medidores inteligentes, que permitem maior controle e gestão do consumo por parte dos usuários.
Outro ponto fundamental no processo de renovação das concessões é a garantia de que que todos possam acessar a rede e ter seus serviços e direitos preservados, incluindo os consumidores que possuem sistemas de geração própria ou distribuída. Vale ressaltar que já existem muitos indicadores de qualidade na prestação de serviço, porém esses indicadores são apurados pelas próprias distribuidoras e não sofrem a adequada fiscalização do regulador. Assim, acreditamos que uma fiscalização e publicidade independente e eficiente por parte da ANEEL possa endereçar esses desafios.
Ainda sobre o acesso à rede, a renovação das concessões deve contemplar uma solução definitiva para as recorrentes negativas de conexão de usuários que, no pleno exercício do seu direito, buscam instalar sistemas solares em seus imóveis, bem como equacionar as alegações de inversão de fluxo de potência pelas distribuidoras, sem a apresentação prévia de estudos técnico comprobatórios.
Tais alegações são tecnicamente insustentáveis. Os componentes elétricos são fabricados para o fluxo em qualquer sentido, desde que respeitados os limites térmicos. O que pode necessitar é apenas uma parametrização para uma resposta mais adequada dos equipamentos locais. Não se pode permitir que as concessionárias usem brechas regulatórias para exercer o poder de monopólio e restringir o direito do consumidor de gerar a própria energia.
Há também a necessidade de coibir eventuais práticas anticompetitivas na geração distribuída. Quando foi feita a alteração do modelo estatal verticalmente integrado para o modelo privatizado desverticalizado, tomou-se o cuidado de estabelecer que empresas de distribuição não poderiam ter atividades de geração e comercialização, além da atribuição da responsabilidade pela fiscalização ao órgão regulador. Tal fiscalização deve monitorar casos de desvios de conduta, como possíveis compartilhamentos de informações concorrencialmente sensíveis entre as distribuidoras que compartilham o mesmo ambiente corporativo com outras empresas do seu grupo econômico que atuam com geração distribuída, promovendo um ambiente justo de competição entre todos.
Diante dos desafios e oportunidades identificados, é imprescindível que o processo de renovação das concessões de distribuição de energia elétrica seja conduzido com foco na transparência, eficiência e inovação. O futuro do setor eletroenergético brasileiro depende da adoção de redes inteligentes, capazes de integrar novas tecnologias e acomodar o crescimento da geração própria ou distribuída, garantindo que todos os usuários tenham acesso a um sistema moderno, confiável e competitivo.
A modernização da rede não é apenas uma necessidade tecnológica, mas também uma oportunidade de reestruturar o setor, promover a inclusão de novos atores e corrigir distorções históricas, como a falta de clareza na formação das tarifas. Com uma regulamentação mais robusta, que promova a fiscalização independente e o livre acesso à rede, o Brasil poderá alcançar um equilíbrio justo entre a geração de energia a baixo custo e tarifas mais acessíveis para o consumidor.
Somente com uma abordagem proativa e colaborativa, envolvendo o governo, empresas e a sociedade civil, será possível responder à pergunta que paira sobre o setor elétrico: como garantir que a transição energética seja, de fato, benéfica para todos os brasileiros?
Autores:
Christian Cecchini – especialista técnico-regulatório da ABSOLAR
Marina de Santana Souza – vice-coordenadora do grupo de trabalho de geração distribuída da ABSOLAR
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