O próximo leilão de reserva de capacidade, anunciado mediante Consulta Pública (CP) do Ministério de Minas e Energia em março, tem sido um dos temas de destaque do setor elétrico ao longo deste ano. Incialmente previsto para acontecer em agosto, este leilão tem sido objeto de um amplo debate sobre requisitos sistêmicos, tecnologias a serem contratadas e até questionamentos sobre o propósito deste certame.
É importante destacar que o leilão de reserva de capacidade (ou LRCAP, no jargão setorial) é um certame um pouco diferente dos demais leilões do setor elétrico. Em vez de contratar energia, ele contrata um “seguro” de potência adicional para momentos críticos. O primeiro leilão desta natureza aconteceu em 2021 e contratou 4,17 GW de usinas termoelétricas a gás natural, por um preço médio de R$ 812.700,00 por MW instalado por ano, e com despachos de 12 horas de duração mínima, independentemente da efetiva necessidade energética. Adicionalmente, quando despachadas, a operação dessas usinas será ressarcida conforme o custo variável unitário (CVU), declarado em cerca de R$ 600/MWh para a maioria dos empreendimentos contratados na ocasião. Ou seja, o poder concedente contratou e os consumidores de energia elétrica pagarão cerca de R$ 3,4 bilhões ao ano pela disponibilidade dessas usinas, além do ressarcimento do CVU que poderá chegar até R$ 5 bilhões por ano.
O LRCAP de 2021 foi desenhado para atender principalmente as 120 horas mais críticas do ano, assegurando que o sistema não correria riscos de não atender as necessidades da carga dos consumidores brasileiros. No entanto, a modernização da matriz elétrica brasileira traz novos desafios para que o nosso sistema seja operado de forma segura. Diante do bem-vindo crescimento das fontes renováveis, especialmente através da micro e minigeração distribuída (MMGD), o Brasil terá um desafio dicotômico: superávit de geração de energia e, ao mesmo tempo, déficit de potência.
Os motivos por trás desta aparente contradição são encontrados no perfil de geração e nas modalidades de despacho da fonte renovável que mais cresceu ao longo dos últimos anos – a solar fotovoltaica. O pico da geração solar sempre acontece no início da tarde, causando um desalinhamento com o perfil da carga nacional, que atinge seu ponto máximo à noite, entre às 18 e 22 horas. Adicionalmente, os sistemas de MMGD têm prioridade de despacho. Eles sempre injetam todo seu excedente na rede elétrica, mesmo em dias quando nem precisaria de tanta energia. Esses dois fatores – o descasamento entre as curvas de geração solar e de consumo, e a prioridade de despacho da MMGD – contribuirão para uma alteração significativa da curva de carga brasileira. Ela ficará cada vez mais ‘achatada’ no horário do meio-dia e terá rampas cada vez mais ‘íngremes’ no final do dia, conforme evidenciado no gráfico abaixo. Segundo análises do Operador Nacional do Sistema (ONS), a potência das usinas hidroelétricas existentes poderá ser insuficiente para atender esta rampa noturna já a partir de 2027.
Diante deste cenário, o debate sobre a possibilidade de contratação de novas tecnologias, com maior nível de flexibilidade operativa e menores custos de disponibilidade e operação parecem oportunos, afinal, cada vez mais moderno, eficiente e confiável será o sistema que dispuser de múltiplas “ferramentas” para combater seus novos e variados desafios.
O conceito do próximo LRCAP precisa ser repensado. Além de assegurar potência para as 120 horas mais críticas do ano, será cada vez mais importante possuir ativos de flexibilidade operacional que possam ser despachados durante as quatro horas da ponta noturna ou exatamente conforme a necessidade sistêmica ao longo do dia, de forma segura e confiável e pelo menor custo possível.
A Consulta Pública do LRCAP 2024 incialmente contemplou apenas a contratação de usinas termoelétricas (UTEs) e hidroelétricas (UHEs). Adicionalmente, concedeu às UTEs uma duração de despacho de oito horas, independente da real necessidade energética do sistema. Sistemas de armazenamento não foram contemplados, sob alegação de ‘carecer de suporte normativo’ e de ‘limitações operacionais’. Ambas as alegações são facilmente superadas, uma vez que os ajustes regulatórios para permitir a participação dos sistemas de armazenamento no certame, especialmente àqueles acoplados a usinas, seriam mínimos. E, para despachos de aproximadamente quatro horas, as baterias são uma solução técnica ideal, pois além de não possuírem limitações operacionais, oferecem flexibilidade e confiabilidade ao ONS. Em estudo inédito, a Associação Brasileira de Soluções de Armazenamento (Absae) mostrou que para despachos de quatro horas, sistemas de armazenamento oferecem uma economia de mais de 50% no custo global, quando comparados às térmicas a gás natural.
Não é à toa que países como o Reino Unido, Austrália, Itália, além de vários estados dentro dos EUA, há anos contratam sistemas de armazenamento com baterias para seus respectivos mercados de capacidade.
Evidentemente, o LRCAP 2024 não acontecerá em agosto. Diante dos adiamentos na tomada de decisão do poder concedente, fica cada vez menos provável que ainda aconteça este ano. Há de questionar-se sobre os impactos deste adiamento. O Brasil não deveria perder a oportunidade de ampliar seu portfólio de soluções para proporcionar à operação do sistema elétrico nacional maior flexibilidade, confiabilidade, modicidade e descarbonização.
Autores:
Markus Vlasits é CEO da NewCharge e Presidente do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Soluções de Armazenamento (ABSAE).
Adalberto Moreira é Gerente do Negócio de Armazenamento de Energia do Grupo Moura e Vice-Presidente da ABSAE.
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